FUNDAÇÃO COOPERATIVA

SOLIDÁRIA - GENsTE


“GESTÃO DE ESTUDOS E EMPODERAMENTOS 'NOVAS TRAQUINAGENS DE EROS'”

Mitodologia

Mitodologia - a mitocrítica e a mitanálise como metodologia[1]

‘A razão e a ciência apenas unem os homens às coisas, mas o que une os homens entre si, no nível humilde das felicidades e penas cotidianas, é essa representação afetiva porque vivida, que constitui o império das imagens.’ (Durand, 1988: 106).

Segundo Durand, as principais funções da imaginação são o equilíbrio biológico, psíquico e sociológico, sendo esses vitais para uma sociedade estabelecer um saudável e vital equilíbrio antropológico. Para ele, a tecnocrática - tecnológica e burocrática - civilização ocidental, asfixiada pelo racionalismo clássico e saturada de proibições simbólicas, oriundas de uma antiga e extrema desvalorização da imaginação, tem vivenciado, paradoxalmente, um intenso processo de remitização, de tal proporção que estão abertos os caminhos para a necessária reparadigmatização. Como a Antropologia vem, já há um bom tempo, viabilizando um completo recenseamento de temáticas e manifestações culturais, a partir da confrontação planetária das culturas, vivemos, contemporaneamente, a possibilidade concreta de compor um museu imaginário geral de todas as manifestações humanas, podendo nos apropriar perlaborativamente deste patrimônio imaginal para melhor apreendermos, compreendermos e interpretarmos os múltiplos sentidos da existência e da condição humana. Torna-se possível, portanto, uma reequilibração simbólica, em escala mundial, de toda a espécie humana. É então que

... a antropologia do imaginário pode se constituir, antropologia que não tem apenas a finalidade de ser uma coleção de imagens, de metáforas e de temas poéticos. Mas que também deve ter a ambição de montar o quadro compósito das esperanças e temores da espécie humana, a fim de que cada um nele se reconheça e se revigore. (Durand, 1988: 106).

Nessa perspectiva é que podemos compreender suas proposições de uma hermenêutica instauradora e de remitificação (Durand, op. cit.), visando à restauração do pensamento simbólico, proposições fundamentadas nas complexas e profundas motivações antropológicas que se encarnam em todas as manifestações culturais - as produções humanas -, e libertas da lógica linear-cartesiana, disjuntiva, reducionista, simplificadora e excludente, herdada do racionalismo clássico, dos positivismos. Essas proposições se orientam por uma filosofia geral da Antropologia, em consonância com uma nova postura epistemológica, que procura reconciliar os poderes da imagem e do símbolo com os poderes da razão.

A essa filosofia geral, fruto da revolução epistemológica contemporânea, Durand (op. cit.: 38, 60-3 e 110-1), jogando com as palavras methodos, logos e myto, denominou mitodologia. A ela refere-se constantemente, também, como Ciência do Homem e, algumas vezes, Ciência do Mito, imbuindo já, no termo ciência, o sentido pleno do novo espírito científico e antropológico. Definiu-a, ainda, como um método[2] apropriado ao estudo do imaginário (Durand, s/d: 159), à leitura em profundidade das múltiplas formas de manifestação simbólica do ser humano, animal simbólico e, por isso, da sociedade e da cultura. Pois, como mostram as noções de profundidade e profundidade simbólica (op. cit.: 122-34), o arquetipal e o mítico coincidem, sobredeterminando a ordem profunda do(s) sentido(s) que o homem a tudo busca atribuir, ao tentar dar respostas lógicas, racionais às grandes questões da condição existencial humana.

A mitodologia como filosofia geral, como uma reflexão globalizante mas não totalitária, orienta epistemológica (o porquê) e metodologicamente (o como) essa outra, essa nova démarche humana, buscando reconciliar, equilibrando, razão e imaginário (Durand, 1982: 64). Utiliza-se da linguagem do imaginário e do mito como linguagem científica pertinente às ciências do homem e, em especial, às ciências do texto (op. cit.: 65) e desdobra-se operacionalmente, em termos metodológicos, em duas dimensões de estudo e pesquisa: a mitocrítica e a mitanálise.

A mitocrítica

... é justamente uma crítica do tipo crítica literária, como se diz, crítica de um texto, crítica que tenta por a descoberto por detrás do texto quer seja  um texto literário (poema, romance, peça de teatro etc.) ou mesmo o estilo de todo um conjunto de uma época – mas em rigor, texto jornalístico – que  tenta pôr a descoberto um núcleo mítico, uma narrativa fundamentadora. (op. cit.: 65).

Composta por um conjunto bem articulado de instrumentos teóricos-conceituais e prático-operacionais, metodológicos, epistemologicamente embasados na mitodologia, a mitocrítica permite detectar e discernir os mitos, os núcleos e esquemas míticos que atuam subjacentes às narrativas e se alinham aos grandes mitos clássicos geralmente conhecidos (op. cit.: 73-4). Ela tem como um de seus pressupostos básicos a idéia de que sempre há algo no texto banal, num nível bem mais profundo de leitura (o latente: arquetipal, mítico) que se encontra para além da superfície (o patente: manifesto, ideológico) e que pode nos levar a um grau ainda maior de apreensão, compreensão e interpretação sobre ele. Para isso, esse “algo” precisa ser adequadamente trazido à tona e posta em relevo.

Por sua vez, a mitanálise consiste

... numa deslocação dos métodos [da mitocrítica] para um campo mais largo que o do texto literário, para um campo mais largo e, por isso mesmo, muito mais aleatório: o campo do aparelho ou das instituições ou das práticas sociais. Ou seja, para o campo da Sociologia. (op. cit.: 87).

Como vemos, trata-se de utilizar os mesmos instrumentos teóricos-conceituais e metodológicos da mitocrítica, agora em uma perspectiva ampliada, alargada, do campo de análise, de leitura. Passa-se do campo “restrito” da literatura para a vastidão do social e da sociedade, do texto literário para o contexto sócio-cultural. Deste modo, a sociedade torna-se, também, passível de uma leitura profunda, mitocrítica, de modo que o próprio contexto (a sociedade) torna-se texto, sendo a mitanálise uma mitocrítica expandida à sociedade, também a ser “lida” e compreendida em profundidade. Como podemos perceber, a diferença entre elas é que a mitanálise será

... aplicada a um texto, um texto fluido, um texto que não tem a facilidade literária, linear, unidimensional da escrita, mas um texto que se refere a todo o conteúdo antropológico de uma sociedade, um texto a várias dimensões, de algum modo, a três, quatro, cinco dimensões: os objectos, os hábitos de vida, os costumes, as opiniões, os monumentos e os documentos. (op. cit.: 89).

Sua singularidade em relação à mitocrítica reside, portanto, na leitura profunda, de aparelhos, instituições ou práticas sociais, bem como de objetos, hábitos de vida, costumes, opiniões, monumentos e documentos etc. que exprimem uma sociedade, abrangendo um largo período de tempo, um tempo de longa duração. Isto é, a mitanálise permite o exame e a determinação, a detectação, dos grandes esquemas míticos de uma sociedade num segmento de duração social e, assim, mostrar as camadas míticas que se imbricam, desvelando a anatomia dissecada de um momento social em seus componentes míticos (op. cit.: 97 e 104). Temos, então, na mitálise, a extensão da mitocrítica a todo o campo do social, a todos os “objetos” passíveis de uma leitura profunda e a ampliação da temporalidade, na perspectiva da história das mentalidades e das temporalidades múltiplas de Fernand Braudel, bem como da concepção antropológica de paisagem cultural. Pois, a mitanálise “... se centra nos fenômenos e nas estruturas de longa duração de uma sociedade” (Durand, s/d: 259), assinalando, analisando, compreendendo e interpretando o sentido das modulações e das invariantes míticas, que permaneceram.

Em síntese, a mitocrítica e a mitanálise compõem, como dois momentos distintos, mas articulados, a hermenêutica mitodológica (Durand, 1983), que, como vimos, pode ser aplicada a um terreno muito variável, sobretudo em dimensões, devendo o pesquisador estar atento à escala, à amplitude da narrativa que escolheu e definiu (desde um pequeno fragmento de texto até todas as obras de uma época), de acordo com suas fontes de pesquisa. Pois, dependendo da dimensão e escala do estudo, isto é, quanto maior for o terreno escolhido, mais a mitocrítica tende sempre a adotar uma mitanálise (Durand s/d: 246-8).

Nesse sentido, podemos compreender a mitocrítica como um recurso metodológico baseado num método compreensivo e interpretativo de análise, estruturalmente semelhante à crítica literária, que tem por objetivo detectar o núcleo mítico de textos e, portanto, num primeiro momento, com uma dimensão mais estática, preocupando-se basicamente em captar as invariantes E a mitanálise como um método de detecção dos mitos instauradores que caracterizam um determinado contexto sócio-histórico-cultural e das condições de ressonância e ressurgência dos esquemas míticos ou grandes mitos diretores, que moldam um período da produção cultural e, portanto, envolve uma dimensão mais dinâmica, preocupando-se mais com as modulações, os movimentos do mito, isto é, “... como é que um mito se ‘modifica’, quais são os processos dessas modificações, como é que a ‘modificação’ se processa...?” (op. cit..: 246) etc.

Pois, sendo o mito perene (op. cit.: 97-8), ele nunca desaparece completamente, mas, também, jamais se mantém em estado puro, original, estando sempre sujeito à flutuações, inflacionárias e deflacionárias, das unidades significativas que o compõem, justamente para garantir sua sobrevivência. Devido à estrutura formal-esquemática que lhe é característico, ao acompanhar o movimento histórico-sócio-cultural, o mito sofre modificações, evoluções ou manipulações (op. cit.: 96) em suas unidades mitêmicas, enfim, derivações, e, assim, ele vai incessantemente sendo “recheado” ou recomposto por unidades significativas diversas (chegando até mesmo a passar por um processo de inflacionamento) ou, inversamente, vai se desgastando (passando por um processo de deflacionamento). Por isso, o mito é

... em última análise, um quadro, se não formal, pelo menos esquemático (...) incessantemente preenchido por elementos diferentes. (op. cit.: 97).

... sendo [o mito] sempiterno e mantendo-se numa semântica fixada de uma vez por todas, nunca desaparece. Mas desgasta-se, o que significa que existe, no movimento temporal do mito, períodos de inflação e deflação. (...) períodos de intensidade e períodos de apagamento, de ocultação. (op. cit.: 97).

O mito é estruturalmente formado, conforme Durand (1983: 29), pela articulação redundante de mitemas, as menores unidades significantes do discurso mítico definidas pelos pontos fortes e repetitivos da narrativa. Os mitemas passam por modificações, por modulações, de acordo com a temporalidade, manifestando-se e atuando semanticamente, seja de modo patente (repetição explícita de conteúdos homólogos – situações, personagens, emblemas etc.) ou latente (repetição de esquemas intencionais, recobertos de outras novas roupagens para encobrir velhos e persistentes temas míticos) (Durand apud Teixeira, 2000: 29-30). Assim, como o mito é flutuante (Durand, s/d: 98), dois são os processos de desgaste e modificação - e, num certo sentido, de atualização - dos mitos: as derivações e a usura, propriamente ditas e provocam, em certa medida, uma distorção do mito; elas ocorrem quando alguns  mitemas são substituídos por outros que foram agregados ao mito ou quando mitemas desapareceram por terem sido desfeitos; o desaparecimento do mitema causa um empobrecimento do mito e a sua substituição por outro, uma ampliação. A usura ocorre quando o processo de derivação é muito grande, provocando a perda de um conjunto de mitemas constitutivos do mito, o que ocorre, geralmente, em períodos de retraimento do mito e, portanto de latência. O processo de usura pode dar-se por denotação (excesso de redundância patente do conteúdo mitêmico, de modo que, apesar do nome do mito ser mantido, ele encontra-se esvaziado de sua substância mitêmica, disfarçado por falsa denominação e tendendo à representação estereotipada, carregada e exagerada do mito) ou por conotação (excesso de transformação do sentido mítico), chegando a levar, no extremo, a uma inversão total ou à perda do sentido “original”, motivada pela diluição ou eufemização da intenção dramática, da “lição moral” do mito.

Sobre a questão da especificidade da mitocrítica durandiana, que lida com discursos saturados de simbolismo, e do grau de articulação e (in)distinção entre a mitocrítica e a mitanálise, Araújo e Silva (1997: 25) não acham pertinente o uso do conceito de mitema em textos com máxima racionalização do discurso. Considerando a relação existente entre ideologia (ideário) e mito (imaginário) (op. cit.: 25), conforme demonstrou Sironneau (1995 e 2000), eles propõem para a leitura em profundidade de textos altamente racionalizados a utilização do conceito de ideologema[3], fazendo a ponte entre a dimensão mítica e a dimensão ideológica, enfim, entre o imaginário e ideário. O conceito de ideologema não está confinado à dimensão mítica como o conceito de mitema, mas “... é um conceito mais amplo e apropriado à analise da dimensão mítico-ideológia...” (Araújo e Silva, 1997: 27) ou ideo-mítica, ambas as expressões referindo-se a um discurso meio ideologógico, meio mítico, altamente racionalizado.

Esses autores apóiam-se, ainda, no conceito de idéias-força compreendido como traves-mestras, idéias-chave, dos discursos ideo-míticos (op. cit.: 33-4), em torno das quais constelam os ideologemas e que, por sua vez, permite-nos aproximar e agrupá-los em determinados conjuntos, séries ou pacotes.

Cabe aqui ressaltar que, nesta pesquisa, de acordo com objetivos mais restritos ao âmbito da mitocrítica, mas sem desconsiderar as reconhecidas vinculações entre texto e contexto, assim como entre ideologia e mito, tomamos a mitocrítica e a mitanálise como dois momentos distintos da mitodologia. Lembramos que passar da mitocrítica para a realização de uma mitanálise propriamente dita depende, como vimos anteriormente, da amplitude temporal necessário e que se queira dar ao estudo realizado, da escala de amplitude que as fontes escolhidas representam (Durand, s/d: 247-48) e, ainda, acreditamos, da quantidade de mitocríticas já realizadas sobre determinadas temáticas numa certa duração temporal. Pois, é a realização de diversas mitocríticas ou de uma mitocrítica em uma ampla escala temporal que permitiria estendê-la a uma mitanálise; não sendo assim, haveria um grande risco de, com apenas uma ou ainda poucas mitocríticas realizadas em uma pequena dimensão temporal, cairmos em perigosas generalizações ou enquadramentos mecânicos, sob pena de abstratas homogeneizações e perda da riqueza da singularidade, essencial ao estudo antropológico e, portanto, mitodológico.

Nesta perspectiva, é importante assinalar que o intuito primeiro, o interesse específico, desta pesquisa é fazer uma leitura mitocrítica das duas propostas de Planos Nacionais de Educação mais recentes (oficialmente apresentadas à sociedade brasileira no final do ano de 1997 e início de 1998). Tratando-se de um exercício inicial e exploratório, a partir apenas de dois documentos de um mesmo momento histórico. Não temos, portanto, a pretensão de fazer propriamente uma mitanálise, uma leitura mitanalítica da temática da educação nacional numa escala de longa duração, como por exemplo, em todo o Brasil-República, a partir de todos os Planos Nacionais de Educação do período. Por isso, face à dimensão e escala temporal proposta e definida para esse estudo, bem como à quantidade de fontes trabalhadas e às próprias limitações do pesquisador, preferimos identificar a leitura que realizamos como uma leitura mitocrítica (que, é claro, quando necessário poderia aproxima-se e se utilizar de uma perspectiva mitanalítica, recorrendo à leituras mitocríticas já realizadas). Pois, para a realização de uma mitanálise seria necessário aplicar a mitocrítica, “..., mas em condições infinitamente mais difíceis e que necessitam muito mais maturidade...”, conforme ressalta o próprio Durand (1982: 89), de modo que a facilidade literária, linear, unidimensional da escrita seria substituída pelo (con)texto composto por todo o conteúdo antropológico de uma sociedade, numa determinada duração social.

Assim, para a leitura em profundidade dos documentos apontados faremos uso da proposta metodológica de Durand, bem como das contribuições teórico-metodológicas, considerações e conclusões de Sironneau (1985 e 2000), de Araújo (1996), de Araújo e Silva (1997, 1999 e 2000) de Teixeira (1999 e 2000) e de Teixeira et al. (1998).

Também, levando em conta as especificidades dos discursos altamente racionalizados, como, por exemplo, as propostas dos Planos Nacionais de Educação, relembramos que o próprio Durand (1983: 7-12), explicando seu diagrama da Tópica Social, mostra como o imaginário, sendo matriz dos sistemas filosóficos, lógicos e conceituais, define e descreve, durante a circulação englobante dos mitos, um certo conjunto social e, portanto, toda sua produção cultural. Segundo essa tópica, como vimos no item anterior deste capítulo, é possível analisar o processo de racionalização nesta circulação do mito pela sociedade em três níveis: o id, o ego societal e o superego. Assim, o discurso racional, em sua univocidade e espessura, situa-se no nível do superego, sendo que, no nível patente (instituído) temos a dimensão ideológica, de pregnância mítica diminuída e, no latente (instituinte), a dimensão mítica, sempre ancorada em profundidade no imaginário (op. cit.: 10). É o que bem comprovam, por exemplo, as pesquisas de Sironneau (1985 e 2000): na ideologia, toda a simbólica subjacente apresenta-se por meio de esquemas e traços míticos degradados; isto porque

... o dinamismo energético do mito encontra-se contido, encerrado no envelope racional da ideologia como num espartilho; ele perde intensidade: a equivocidade, a espessura de sentido que caracterizavam todo simbolismo e todo discurso mítico, cede o lugar a um conceptualismo caminhando para a univocidade. Em conseqüência desta racionalização e secularização, o imaginário ideológico aparece empobrecido e, a nosso ver, degradado. (Sironneau, 2000: 47).

Neste sentido, o trabalho hermenêutico que Sironneau desenvolveu sobre as ideologias políticas do nacional-socialismo, do comunismo e do jacobinismo, para detectar esquemas e-ou traços míticos nas ideologias políticas, só tornou-se possível

... porque admite, por um lado, que o semantismo do discurso não é redutível à sua estrutura formal e que, por isso mesmo, é já sinal de uma presença simbólica, ainda que velada dos traços míticos, e que, por outro lado, esses mesmos traços (que podem ser mitemas ou mitologemas) se encontram habitualmente degradados, disseminados ou traduzidos num outro tipo de discurso, que à primeira vista não revela qualquer semelhança com qualquer estrutura mítica... (Araújo e Silva, 2000: 187).

Assim, nos discursos político-ideológicos, apesar de altamente racionalizados, mesmo não sendo fácil, como afirma Teixeira (1999: 103), é possível ler o sentido latente que se esconde no patente. Dessa forma, pensamos poder encontrar neles traços míticos, ainda que empobrecidos, desgastados, degradados e parecendo não ter qualquer vinculação com estruturas míticas. Tomamos, como pressuposto básico a concepção de que as “... epistémes, as ideologias, as utopias, os programas, enfim, tudo que toma a forma de um discurso racional e unívoco...” (Durand, 1983: 10), como por exemplo, os projetos e planos educacionais, mesmo pretendendo-se produções eminentemente racionais (objetivas, neutras e científicas), têm suas raízes fincadas no imaginário, visto ser este a base fundante das racionalizações. Pois, todas as diversas formas de sistematizações são resultantes de um progressivo movimento de circulação do mito até a sua máxima racionalização, situando-se aí o menor nível de espessura mítica do social, ocorrendo nelas a diminuição da pregnância mítica (op. cit.: 10). Desse modo, projeções imaginárias aglutinam-se paulatinamente, consubstanciando-se em conceitos socializados, consolidados em ideários e ideologias.  Frutos de uma desmitificação objetiva, tais discursos alardeiam-se racionais, objetivos, neutros e científicos, portanto, legítimos[4]. No entanto, o que acabam por veicular são, essencialmente, valores racionais de um mito racionalizado expressos em ideologias, já que, enfim,

... razão e inteligência, longe de estarem separadas do mito por um processo de maturação progressiva, não passam de pontos de vista mais abstratos, e muitas vezes mais sofisticados pelo contexto social, da grande corrente de pensamento fantástico que veicula os arquétipos. (Durand, 1997: 389).

Por isso, durante a circulação do mito, conforme a tópica diagramática do social, a razão vai incorporando características dos mitos fundadores, os quais, por sua vez, vão se enfraquecendo, à medida que o discurso é racionalizado. Nesta perspectiva, podemos compreender, com Durand (op. cit.: 415-7), como o pensamento “objetivo”, objetivante, formaliza-se e consubstancia-se por meio da linguagem, de modo que o semântico dilui-se ou se enrijece em semiológico, fazendo com que, entre a pura imagem e o sistema de coerência lógico-filosófico que ela promove, emerja o discurso. É a retórica - pré-lógica que faz a intermediação entre a imaginação e a razão -  que nos permite, face à degradação do semantismo dos símbolos, “... transcrever um significado por meio de um processo significante" (op. cit.: 416), viabilizando a apreensão e o “acesso” ao sentido próprio dos signos, por meio do acompanhamento que possamos fazer da passagem entre o semantismo do símbolo e o formalismo da lógica. Pois, toda retórica funda-se no poder metafórico de transposição de sentidos, variando o contexto, a época, sendo que as palavras - e os discursos a partir delas proferidos - somente se realizam, porque são vivenciadas num dado contexto expressivo.

Cabe ressaltar que o método mitocrítico coloca-se como apenas uma das leituras profundas possíveis. E, quanto à questão da subjetividade da leitura, lembramos que, de acordo com a visão hermenêutica, o ato da leitura é sempre um ato concreto de gestação de sentido

... no qual se completa o destino do texto. É no próprio âmago da leitura que, indefinidamente, se opõem e se conciliam a explicação e a interpretação. (Ricoeur: 1986: 162).

... pois o que está para se interpretar num texto é uma propositura de mundo, de um mundo tal em que eu possa aí habitar para aí projetar um dos meus mais íntimos e específicos possíveis. A isso chamo o mundo do texto, o mundo próprio a esse texto único. (op. cit.: 112).

Segundo a concepção hermenêutica mitodológica durandiana, ao definir a metodologia geral do tratamento de um texto na perspectiva mitocrítica[5], na qual há um texto que se desenrola, ele nunca se apresenta gratuita e inocentemente, sem compromissos, nunca se oferece imediatamente significando, mas

... contém sempre, assimilado, no centro de si, um ser [termo de Ernest Cassirer] pregnante, ou seja, um fundamento que interessa (...). Ora bem, um texto olha-nos, quer dizer, é mais que um interesse, é um cruzamento de olhares ... (...) ... um texto olha-nos e é o que num texto nos olha que é o seu núcleo. E esse núcleo, (...) qualquer coisa que nos olha, que nos interroga, pertence ao domínio do mítico.  (Durand,1982: 66).

É, portanto, por meio desse entrecruzamento de olhares que ocorre no ato da leitura, que se torna possível encontrar e apreender indícios de traços míticos e de estruturas intencionais profundas, presentes em núcleos figurativos, que, por sua vez, podem levar-nos a colocar em relevo, a identificar, o(s) mito(s) que atua(m) por detrás da narrativa do texto, no caso desta dissertação, do discurso presente nos textos das propostas dos Planos Nacionais de Educação.

 Para proceder metodologicamente, considerando este tipo de análise crítica como um modo de leitura em profundidade, arquetipal, do texto, é preciso levar em conta que, conforme Durand (op. cit.: 76), a mitocrítica é realizada considerando uma dupla entrada: 1- diacrônica: leitura pontual do texto na sua seqüência linear, identificando o que nele está a me olhar e se repete obsessiva e redundantemente, no qual os olhares se cruzam pela ressonância;  e 2- sincrônica: leitura, no conjunto, desses núcleos de ressonância identificados no entrecruzamento de olhares, detectados e identificados. A leitura mitocrítica “... desdobra a diacronia, mas classifica-a em pacotes sincrônicos” (op. cit.: 76), no decorrer da leitura sincrônica.

Ao realizar a leitura [mitocrítca], de acordo com os objetivos da pesquisa, conduzimos o olhar pelos textos para, na leitura diacrônica, levantar e selecionar em cada uma as redundâncias significativas, ou seja, os pontos fortes (pregnantes, repetitivos e redundantes, obsedantes) do discurso[6] que se desenrolam no decorrer do próprio tempo da obra, considerando aí que: “O tempo da obra é um tempo duplo, é tempo da leitura e é também um tempo figurado.” (op. cit.: 75).

Assim, baseando-nos nas indicações de Araújo e Silva (1997: 27-8), de que a determinação dos ideologemas se dá assim como os mitemas, a partir do que é aberta e obsessivamente repetido, num primeiro momento, buscamos [nos textos estudados] esses núcleos de redundâncias, constantemente reiterados em diferentes pontos da diacronicidade do discurso (o que resultou num inventário extensivo e exaustivo dos ideologemas). Num segundo momento e já na perspectiva da leitura sincrônica do texto, analisamos atentamente os diversos ideologemas encontrados na leitura diacrônica do texto, considerando o inventário realizado e, quando necessário, voltamos ao texto, conseguindo levantar, selecionar, compor e identificar nos textos analisados certos conjuntos, séries, famílias ou, como os denominam Durand (1982: 75), pacotes ou constelações de imagens, que são diversos, mas remetem-nos a um mesmo significado.

Para uma melhor compreensão da metodologia, é importante ressaltar que, devido às características intrínsecas ao símbolo, “... para um significado temos uma infinidade possível de significantes.” (René Thom apud op. cit.:75); os quais possuem uma homologia e coerência internas de sentido, o que nos possibilita, portanto, agrupá-los e classificá-los pelos seus traços comuns; também cabe ressaltar que esses pacotes significativos podem ser constituídos “... de imagens, de símbolos, de situações, de lugares, de emblemas, tudo  o  que  quisermos, e  que seja de algum modo coalescente ou homólogo, onde haja um traço de homologia.” (op. cit.: 76).

Ainda, considerando que, de modo geral, em textos duros (de caráter científico, técnico, legal etc.) eminentemente racionais, o imaginário encontra-se empobrecido, degradado e subsumido, subjacente ao ideário, como bem mostra Sironneau (2000: 47) e frisam Araújo e Silva (1997: 26, 1999: 91 e 2000: 187), Teixeira et al. (1998: 26) e Teixeira (1999: 103 e 2000: 43), optamos por tomar também como referência, visto que na prática da leitura “mitanalítica” de discursos com forte teor ideológico mostrou-se bastante útil, o conceito de ideologema, definido como

... um complexo significante de energias semânticas e mobilizador de idéias-força que, ao resultar da interacção das facetas arquetipal e sócio-cultural do Imaginário, condensa num discurso racionalizante, constituído pelas figuras desse mesmo Imaginário (esquemas conceptuais ou ideológicos, míticos, metafóricos, utópicos e demais formas simbólicas), o fluxo de imagens arquetípicas, provenientes do Nível Fundador (o Inconsciente Coletivo). (Araújo e Silva, 2000: 187-8).

Como complexas unidades significantes e fios condutores dos fluxos ideo-míticos, os ideologemas, subsumidos na estruturas do imaginário, traduzem e articulam as idéias-força[7] (dimensão ideológica) e os traços míticos (dimensão mítica: esquemas e estruturas míticas, mitologemas e mitos diretores) do discurso analisado (Araújo e Silva, 1997: 27); ou seja, é

... o ideologema que nos abre a porta para a compreensão da relação ideologia-mito, porquanto ele nos fornece uma espécie de inventário das idéias-força do discurso analisado, que por sua vez, podem encerrar ou não feixes de traços míticos latentes ou patentes.... (Araújo, 1996: 466).

Assim, levando em conta a especificidade das fontes pesquisadas e  que, portanto, trata-se de leitura mitocrítica de textos altamente racionalizados e ideologizados, buscaremos levantar, identificar e selecionar e, depois, perceber a possibilidade de agrupar as diversas redundâncias significativas encontradas – os ideologemas - por homologia de sentidos, em torno de idéias-força que possam sugerir. Se bem sucedido no intuito almejado, analisaremos as idéias-força encontradas – definidas e formuladas -, verificando em que medida elas remetem-nos ou não a traços e-ou estruturas míticos, permitindo (ou também não) a recomposição de certos mitologemas[8], esquemas míticos gerais, descritos em abstratos, que atuam como fios condutores atemporais, visto que ao longo dos séculos carregam algumas preocupações humanas fundamentais e constantes, preservadas e restituídas em suas inumeráveis transmutações (Raymond Trousson apud Araújo e Silva, 1997: 17).

É importante destacar que o ideologema, atuando em uma dimensão mítica degradada, apenas nos permite identificar, por intermédio das idéias-força os núcleos ou traços míticos que nos enviam (ou não), direta ou indiretamente, a um mitema e este, por sua vez,  “... só pode, na maioria os casos, reenviar para a figura do mitologema (tema para Trousson), visto que os mitos directores e as estruturas míticas da humanidade dificilmente encarnam no corpus ideologizado do discurso político, pedagógico, cultural...” (op. cit.: 28). Consideramos, ainda, que um mitologema só se configura através de uma série determinada de mitemas ou de traços míticos (e se for este o caso, através dos ideologemas), relativamente constantes em qualidade ou quantidade (op. cit.: 29).

Enfim, além da elaboração de uma contextualização ideo-mítica das referidas propostas de Planos Nacionais de Educação, que apresentaremos a seguir, percorri as seguintes etapas da leitura mitocrítica, que consistiram basicamente no levantamento, na identificação e na seleção (quando necessário):

- das redundâncias de temas e idéias significativas (através da leitura diacrônica);

- de ideologemas ( através da leitura diacrônica e sincrônica);

- das idéias-força;

- de traços e-ou temas  ideo-míticos,

-de mitemas, mitologemas e mitos a que somos remetidos por intermédio dos traços e-ou temas ideo-míticos identificados;

- dos regimes de imagens e das estruturas do imaginário.

Para a identificação precisa dos mitos diretores subjacentes às propostas de Planos Nacionais foi necessário, ainda, na medida do possível (considerando a vastidão da literatura mítica, mas os poucos trabalhos baseados na mitodologia), recompor as tradições e universos simbólicos- míticos envolvidos e, também, quando possível, levantar os mitemas constitutivos dos principais mitos referidos, ou no mínimo, indícios - índices - mitêmicos[9] para cotejá-los com os traços míticos encontrados. Para tanto, utilizamos algumas obras da literatura especializada sobre mitologia, de contribuições do próprio Durand e de outras leituras mitocríticas já realizadas. E, finalmente, legitimando a leitura realizada, desvelamos, explicitamos os regimes de imagem a que as referidas propostas se encontram subsumidas.

Notas:


[1]-In: DIB, Marco Antônio. As propostas de planos nacionais de educação: um ensaio mitocrítico. São Paulo, Feusp, 2002. (Dissertação de Mestrado). pp. 59-74. (Obs.: para acompanhar referências bibliográficas consultar a Bibliografia do site ou da dissertação - Disponivel em http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/48/48134/tde-15122004-125428/pt-br.php]

[2]-Compreendendo-se a palavra método na perspectiva filosófica, como “caminho que conduz a uma verdade, o méthodos, a démarche  (op. cit.: 38-41).

[3]-Esse conceito será definido, [na dissertação na] pág.72[; neste texto, na pág.13.]

[4]-Como todo discurso competente, no dizer de Chauí (1989).

[5]-A propósito da subjetividade da leitura, ver também Durand,1982: 77-80.

[6]- Chamados por Durand de mitemas e por Araújo e Silva, tratando-se de textos duros, de ideologemas, como veremos, definindo-os em seguida.

[7]- Idéias-imagens empobrecidas que atuam como idéias-chave dos discursos ideo-míticos (Araújo e Silva, 1997: 33-4).

[8]-Um simples esqueleto, “... o resumo, de certo modo, de uma situação mitológica, um resumo abstrato.“ (Durand, 1983: 32). Esse esquema-resumo de um mito é composto por um número mínimo e máximo de mitemas (ou ideologemas, tratando-se de textos altamente racionalizados), a ser estabelecido pelo bom senso do pesquisador-hermeneuta, mas sempre levando em conta que seja “... suficientemente demonstrativo para que se possa elaborar um ‘tipo ideal’ do mitologema ou tema em questão, e que, por outro lado, o número máximo não deverá ser tal que jamais se consiga perceber o que está em jogo na construção desse ‘tipo ideal’.” (Araújo e Silva, 1997: 29).

[9]-Como utilizamos nesta pesquisa, na falta de estudos que levantem e identifiquem os mitemas constitutivos além daqueles que compõem o Mito de Prometeu ( sobre qual, inclusive, fizemos um pequeno exercício exploratório de leitura mitocrítica - anexo 2) e diante da impossibilidade de fazer a leitura mitocrítica dos outros mitos envolvidos, o que seria um outro interessante trabalho de pesquisa.

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