FUNDAÇÃO COOPERATIVA

SOLIDÁRIA - GENsTE


“GESTÃO DE ESTUDOS E EMPODERAMENTOS 'NOVAS TRAQUINAGENS DE EROS'”

Manifesto

1-Uma outra Educação é possível, em teoria e na prática cotidiana

 

"Porque devemos mudar o mundo? A quem interessa mudar o mundo?

O que é esse mundo possível? Como construir esse outro mundo possível?" (Gadotti, 2007: 27-164)

 

          Dar respostas claras e concretas a indagações fundamentais feitas acima pode significar a derrota da hipótese neoliberal do “fim da história”. Pois elas contribuem com a criação de espaços e possibilidades, teóricos e práticos, para tecermos efetivamente um novo projeto de superação do capitalismo. Mas sem regressarmos às tradições emancipatórias que marcaram a modernidade e que precisam ser superadas (Lazzari apud Gadotti, 2007: 7), porém sem serem esquecidas ou desconsideradas.

          Neste sentido, o grande desafio (im)posto pela nossa época (desafio epocal) está em avançarmos, nas contribuições teóricas e práticas, para o surgimento, desenvolvimento e consolidação de uma nova cultura política, de uma nova cultural educacional e de um novo projeto emancipatório que resgate e reinvente o sentido essencial e original das ideias de utopia e emancipação.

          Como assinala Gadotti (op. cit.), em sua perspectiva histórica e de sentido de práxis, nossa luta deve ir ao  encontro da defesa e implantação de um novo paradigma civilizatório na qual a Natureza seja vista como morada (não como recurso) e o ser humano como habitante do planeta (não mais explorador e dominador, objeto de exploração e dominação). Paradigma a ser plenamente assumido pela Educação em todos seus níveis e modalidades, formal e informalmente, no ato de “educar para um outro mundo possível” (op. cit.), em especial pela educação pública e popular.

          Já não basta a "conquista do poder”, é necessário confrontar os valores basilares do mundo contemporâneo e propor, em teorizações e nas práticas cotidianas, uma nova lógica social fundamentada em outros valores, opostos aos hegemonicamente vigentes. Começando por questionar radicalmente a mercantilização da vida (em todos os sentidos e dimensões), os entraves à universalização dos direitos, a degradação ambiental e os riscos de grandes desastres naturais, provocados pela exploração predatória do planeta, como fazem as concepções e práticas nas experiências de desenvolvimento sustentável e economia solidária, que já encontramos efetivamente aliadas à Educação.

          Evidentemente, esta luta não se dá só pelo voluntarismo e pela mera resistência no desenvolvimento teórico, reflexão e crítica, mas principalmente pela vivência de experiências práticas, pela ação.

          A construção desta nova sociedade é cotidiana, aqui e agora, e

           ...não pode ser adiada para o momento da revolução ou da vitória eleitoral. (...) uma lógica social pós-capitalista pode

e precisa surgir, expandir-se e se desenvolver ainda quando as relações sociais hegemônicas são as capitalistas.

(...) Ao se reproduzirem, estas [novas] experiências difundem valores de solidariedade, educam para os direitos,

ensinam a empreender projetos coletivos não voltados para a acumulação egoística de riquezas.

          O pós-capitalismo também se constrói quando evitamos a mercantilização do mundo ou “libertamos”

certos aspectos da vida social das relações capitalistas (Martins apud op. cit.: 8)

 

           Educação, desenvolvimento sustentável e economia solidária são compatíveis e viáveis para a construção de um outro mundo possível: mudar o mundo não só é desejável como necessário; interessa a todos que desejam acabar com a lógica da exploração e dominação, seja da Natureza ou do próprio ser humano.

Perguntei, então, para Ângela, que estava caminhado comigo:

“Você acha possível mudar o mundo?” Ela me respondeu:

“Só consigo viver acreditando nisso! Se a vida pode ter um sentido pleno

é para isso que ela serve: para deixar o mundo um pouco melhor do que o encontramos.

Essa não é a missão de uns poucos heróis, de uns poucos militantes.

É a tarefa de todos nós, de todas as pessoas. A bola está conosco. A bola já vem rolando há tempos.

Estamos num processo de transformação que não está começando conosco.

Nós fazemos parte de um sonho que ultrapassa nossa geração. (op. cit.: 28)

 

Referência bibliográfica

.GADOTTI, Moacir (2007). Educar para um outro mundo possível. São Paulo: Publisher.

 

2-NÚCLEO  FILOSÓFICO (AXIOLÓGICO, EPISTEMOLÓGICO E PRAXEOLÓGICO) DOS REFERENCIAIS DE BASE:

.VISÃO DE MUNDO
.VISÃO DE SER HUMANO
.VISÃO DE SOCIEDADE
.VISÃO DE CULTURA E EDUCAÇÃO


A ANTROPOLÍTICA [do Humanismo Clássico à Antropolítica]

 

- PRINCÍPIOS GERAIS E PEDAGÓGICOS

.antropolítica - ética
.cidadania
.comprometimento
.cooperação - colaborativismo
.criatividade
.dialogicidade
.engajamento
.filantropia -humanismo crítico

.interdisciplaridade
.pluralidade
.relatividade
.responsabilidade
.solidariedade
.transversalidade
.liberdade acadêmica

 

3-O “NOVO ESPÍRITO CIENTÍFICO E ANTROPOLÓGICO”

Marco Antônio Dib[1]

Resumo: Neste manifesto procuramos explicitar o sentido do “novo espírito científico e antropológico”, bem como a teoria geral do imaginário em seus fundamentos, como um referencial teórico-metodológico que, diante da crise do racionalismo clássico e das contundentes críticas à razão prática, instrumental e fechada, procura reconduzi-la a seus limites, através da proposição de uma outra razão, aberta e plural. Referencial esse que se assenta em uma proposta de reparadigmatização, centrada na recuperação e valorização da razão simbólica e cultural - portanto, do imaginário - buscando a sutura epistemológica entre natureza e cultura e a apreensão, compreensão e interpretação dos trajetos antropológicos em sua singularidade.

 

A Teoria Geral do Imaginário como referencial teórico-metodológico

 

Já há um bom tempo, a partir principalmente do último quartel do século XX, as pesquisas científicas de ponta[2] e as teorias críticas frankfurtianas[3] e pós-modernas[4], com as decorrentes rupturas epistêmicas que provocaram, têm fragilizado a antiga e, aparentemente, inabalável confiança epistemológica no paradigma[5] cultural e científico aristotélico-cartesiano, no racionalismo clássico (Morin, 1984; s/da: 186-209 e  s/db: 31-2), deixando perplexo o mundo ocidental.

Com as recorrentes reformulações teóricas, algumas delas verdadeiras revoluções, o aprofundamento e a ampliação dos conhecimentos científicos até então vigentes tornaram-se imprescindíveis para a maior e melhor compreensão do problema epistemológico da complexidade (Morin, s/db) dos fenômenos e da própria realidade como totalidade sistêmica, dinâmica e aberta. As rupturas epistemológicas decorrentes dessas reformulações e revoluções possibilitaram a um número significativo de estudiosos e pesquisadores, das mais diversas ciências, o desvelamento e a denúncia da fragilidade dos pilares em que os conhecimentos científicos clássicos se sustentam.

Desse modo, muito contribuíram para um adequado entendimento da crise e esboroamento das bases fundamentais do racionalismo aristotélico-cartesiano, da epistemologia e das ciências clássicas (Morin,1984 e s/db: 14-8; Durand, 1982: 23-4 e 44-52). Conseqüentemente, para uma melhor compreensão da perda da confiança epistemológica (Santos, 1988: 47), da crescente deslegitimação do saber (Coelho, 1993: 85-6) e, também, do poder da racionalidade tecno-instrumental, que se verificam na contemporaneidade. Mostrou-se, claramente, que os pilares da ciência e do racionalismo clássicos, ao assentarem-se em uma ontologia dualista, dicotômica, estão fundamentados nas lógicas da simplificação, da redução, da disjunção e da exclusão, tendo por base epistemológica a lógica cartesiana, a análise explicativa e o causalismo determinista (Morin, 1984). Vislumbrou-se, a partir daí, que “... em face da razão clássica, há outras razões possíveis e outras formas de fazer ciência...” (Durand, 1982: 32).

Assim, intensificou-se o desvelamento da forte articulação entre ciência e técnica, bem como a enorme cisão existente entre “o que fazer” - a razão técnica - e  “o por que fazer” - a razão política -, separação sempre afirmada em nome da utilidade social ou da produtividade do trabalho - a razão prática, como se elas fossem mutuamente excludentes. Evidenciaram-se a ”colonização” e manipulação dos conhecimentos científicos por projetos de dominação e exploração do homem.

Percebeu-se, portanto, o quanto a razão se converteu “... no grande mito unificador do saber, da ética e da política” (Morin, 1984: 295) e tem sido mistificada nas ideologias da objetividade e neutralidade científica (Chauí, 1989: 31-5) e da condução metódico-racional da vida (Paula Carvalho, 1989: 83), do “viver segundo a razão”, em particular a razão econômica e administrativa. Isto é, o quanto a razão moderna tem estado, ideologicamente, em consonância com os princípios utilitários, pragmáticos da economia política e da administração, daí decorrendo, por exemplo, a prioridade dada ao enfoque das dinâmicas e fatores macro-estruturais, que toma o domínio político-econômico como a causalidade sobredeterminante, em detrimento das dimensões microestruturais da vida cotidiana, na perspectiva sócio-cultural, antropológica. Produziram-se, deste modo, discursos de legitimação dos saberes e poderes, que, assentados na regra  da competência, da autoridade do “falar sobre”, enfim, no discurso competente (Chauí, 1980: 27-29 e 1989: 3-38), cujos reais fundamentos são dissimulados pela autoridade tecno-científica aliada à tecnoburocracia estatal. Pois, baseia-se na univocidade de uma razão que reduz e exclui tudo que for incompatível com seu universo de ação, o praxeológico.

Por isso, a razão clássica, solidária ao racionalismo industrial, tornou-se instrumento de poder, de dominação – manipulação e controle – e exploração, ao instaurar uma lógica da ordem social, racionalizada e racionalizadora, na qual tudo que a perturba precisa ser eliminado, visto que se configura como demência ou criminalidade (Morin, 1984: 301). É a Modernidade contemporânea expressão do domínio dessa lógica, “... à medida que privilegia a implantação de macro-sistemas econômicos e políticos e, ao mesmo tempo, a adaptação do indivíduo a normas, modelos sociais e ideais de produtivismo e progresso.” (Porto,1999: 91).

Contudo, como vimos, a consciência da solidariedade ideológica existente entre ciência, técnica e poder, reforçada ainda pela contundente denúncia da desrazão, da irracionalidade, repressão e violência do totalitarismo da razão tecno-instrumental (Deleuze apud Hansen, 1994: 43-4) e pela constatação da própria saturação dos sistemas de interpretação (Maffesoli, 1988: 57-61 e Teixeira,1990: 17 e 98), pelo vislumbramento da inoperância e falência dos modelos explicativos vigentes[6] trouxeram à tona muitos questionamentos fundamentados em críticas bastante incisivas e apropriadas. Em especial, sobre os motivos pelos quais, no mundo ocidental, privilegia-se um determinado modo de conhecer, assentado na previsibilidade e no controle - na manipulação - dos fenômenos e um certo modo de agir (Sahlins, 1979) orientado pela racionalidade tecno-formal. Pois, o domínio desta lógica tem determinado a racionalização generalizada da cultura e da sociedade, da existência humana, em consonância com um espírito economicista, produtivista e pragmático. Assim, tais críticas à razão prática (op. cit.), alimentadas por uma profunda renovação da psicologia e da antropologia[7], trouxeram à tona muitos questionamentos sobre a lógica moderna da ordem social racionalizante, o que possibilitou a formulação de efetivos ”contra-discursos críticos”, que procuram reconduzir a razão aos seus limites, como por exemplo, as propostas de reparadigmatização  - o paradigma da complexidade de Edgar Morin (1984), a ciência do homem de Gilbert Durand (1982: 55-64) e, na convergência desses, o paradigma holonômico, conforme José Carlos de Paula Carvalho (1990) -, que buscam a sutura epistemológica entre natureza e cultura e centram-se na dimensão das mediações simbólicas.

Para Durand (1997), a guinada paradigmática e civilizacional, cultural, que vivenciamos, encontra-se fortemente enraizada em um “novo espírito científico”. Isso porque a derrocada gradual do (neo)positivismo, sempre unidimensional e totalitário, mutilador do ser humano, de seus saberes e  capacidades, viabilizou o surgimento das várias epistemologias de vanguarda. Essas acabaram convergindo para um “novo espírito antropológico”, para um novo modo de pensar, que recoloca ao mundo ocidental a possibilidade de revalorizar as imagens significativas da representação humana, permitindo à Antropologia a recuperação da razão simbólica e cultural, isto é, “... o poder das imagens e a própria realidade dos símbolos” (Durand: 1982: 26) e, portanto, do imaginário.

Esse novo espírito científico e antropológico, ao radicalizar a problematização da condição humana, do sentido da existência e dos conhecimentos, criou as condições para se colocar em questão o paradigma clássico dominante, baseado em uma racionalidade científica totalitária “... que nega o caráter racional a todas as formas de conhecimento que não se pautarem pelos seus princípios epistemológicos e pelas suas regras metodológicas.” (Santos, 1988: 48).

As abordagens epistemológicas contemporâneas já reconhecem que a intervenção do imaginário e de uma outra racionalidade - figurativa e metafórica - não só é essencial para a existência humana, mas para a própria produção científica. E, apesar, ainda, da forte hegemonia do paradigma clássico, cada vez mais estudiosos e cientistas das mais diversas áreas de conhecimento buscam re-conhecer o homem por inteiro, recuperá-lo na integridade de seu ser, de seus diversos saberes e capacidades, particularmente no que tange às (des)articulações entre razão e imaginação e à necessidade vital de um equilíbrio entre as mesmas. É nesse sentido que têm se desenvolvido as pesquisas do Centre de Recherche sur l’Imaginaire, na França - particularmente de um de seus membros-fundadores, Gilbert Durand, um antropólogo, discípulo de Gaston Bachelard -, situadas nas novas perspectivas de análise “pós-estruturalismo”, no estruturalismo figurativo.

Durand, buscando atribuir um sentido maior para a vida e para o homem, procura desenvolver, por meio da articulação meta e pluridisciplinar dos vários ramos do saber, um projeto de unidade das ciências do homem e uma epistemologia que toma o imaginário, a razão simbólica, como dinâmica subjacente à cultura e, portanto, instância primordial de todas as produções do homem, as quais têm o mito como forma privilegiada de manifestação discursiva. Seus estudos indicam-nos que em todas as sociedades existem, subjacentes, mitos que orientam e modulam, dirigem o curso da história, da sociedade e da cultura, servindo de estruturas dinâmicas orientadoras às atividades humanas significativas. Portanto, se considerarmos os fundamentos míticos do pensamento, bem como os esquemas simbólicos coletivos que se encontram implícitos nas várias criações do homem, veremos que, efetivamente, o pensamento humano move-se de acordo com estruturas míticas do imaginário. Deste modo, conceitos filosóficos e científicos têm uma origem comum, pois emergem de uma mesma fonte que, desde sempre, tem nutrido todas as formas de pensamentos e devaneios humanos: a imaginação.

Segundo Bachelard (1989), imaginação e vontade são as principais funções psíquicas que se manifestam no homem. Mas, a imaginação propriamente criadora possui funções totalmente diversas da imaginação reprodutora; sendo portadora da função do irreal, é psiquicamente tão importante e útil quanto à função do real. Ultrapassar a realidade indo além do já pensado, aí reside à originalidade, a força e o ilimitado poder da imaginação. Pois, compreendendo-a em seu sentido maior, pleno, é possível perceber que a imaginação

... não é, como o sugere a etimologia, a faculdade de formar imagens da realidade, ela é a faculdade de formar imagens que ultrapassam a realidade, que cantam a realidade. É uma faculdade de sobre-humanidade. (op. cit.: 17-8).

Ao tomar a imaginação como um jogo criador basilar também atuante na criação científica, Bachelard (1985) pôde evidenciá-la no cerne das idéias e dos conceitos. Face à hegemonia positivista, à unidimensionalidade e às desrazões vivenciadas pela humanidade, ele passou a assinalar o quanto um novo espírito científico e antropológico estava a exigir do mundo ocidental uma nova razão, um outro racionalismo, aberto, setorial, dinâmico, militante, em equilíbrio vital com a capacidade imaginante. Tornou-se ele, a partir da defesa da imaginação criadora, um dos primeiros a perceber, mesmo que, ainda, sob uma poética da matéria de Empédocles, os sinais da interação entre o humano e o cósmico na formação das imagens, entre as pulsões humanas e as intimações do meio ambiente material (Melloni,1998: 74).

Para Bachelard, somente a revitalização da vontade de poder e de criar poderia conduzir o mundo ocidental à necessária crítica de uma racionalidade firmada num modo de compreensão, que alija do conhecimento o espírito humano em sua inteireza. Visando à expansão do horizonte intelectual-científico da civilização ocidental, vislumbrou ele a necessidade do alargamento das vias, das matrizes, do pensar humano e, portanto, de “... reformular o paradigma racional, positivo, preciso, mas estreito demais para concluir o ‘fato bruto’ da natureza e do homem.” (op. cit.: 91). Quem sabe, então, possa o homem ocidental reconduzir a razão a seus limites e, assim, reequilibrar razão e imaginação, conquistando lugar para o exercício de um pensamento inquieto e aberto, que reencante o mundo e a vida, o homem e seus saberes.

Gilbert Durand, um dos pesquisadores a aceitar tal desafio, concebeu e produziu sua obra maior, “As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à arquetipologia geral”, publicada pela primeira vez em 1960[8], com o objetivo de dar continuidade, de uma perspectiva antropológica, às investigações inauguradas por Bachelard. Nessa obra é  por ele tecido, (re)definido, pois  criticamente ampliado e aprofundado, em consonância com uma antropologia profunda, o conceito de imaginário como

... o conjunto das imagens e das relações de imagens que constitui o capital pensado do homo sapiens - (...)  o grande denominador  fundamental  onde se vêm encontrar todas as criações do pensamento humano. (Durand, 1997: 18).

Nessa pesquisa, além de reelaborar o conceito de imaginário, ele realizou um inventário imagético e uma classificação dos dinamismos intrínsecos ao imaginário, preocupando-se em organizá-los sem a necessidade de utilizar-se de qualquer critério que lhes fossem extrínsecos. Também identificou o que denominou de regimes de imagens (diurno e noturno) e estruturas (heróica, sintética e mística) do imaginário. Para isso, considerou, principalmente, o isoformismo e a homologia existente entre o biológico, o psíquico, o social e o cósmico, como também as interações entres estes na dinâmica de formação das imagens, chamado por ele de

... trajeto antropológico, ou seja, a incessante troca que existe ao nível do imaginário entre as pulsões subjetivas e assimiladoras e as intimações objetivas que emanam do meio cósmico e social. (op. cit.: 41).

Desse modo, Durand afirmou e aprofundou, em seus estudos, a concepção de um imaginário composto por estruturas dinâmicas globalizantes não-lineares, complexas e constelares, organizadoras do processo de formação e transformação das imagens, dos símbolos, dos mitos, mostrando, ainda, o primado material do figurativo ou do imaginário sobre a infraestrutura - a base econômica. Para pesquisá-lo propôs, no desenvolvimento de suas pesquisas, uma mitodologia[9] como hermenêutica instauradora, não redutiva, que permite realizar uma leitura em profundidade, pois arquetipal, dos percursos e trajetos de construção de identidades dos Indivíduos e da Cidade (socialidade), isto é, de conquista da individuação e do sentido de cada cultura e sociedade, grupo e indivíduo.

Como podemos observar, estamos hoje para além das teses clássicas sobre o imaginário, que consideravam a imaginação, segundo Durand (op. cit.), como “o modo ‘primitivo’ do conhecimento científico”, “a infância da consciência”, “a louca da casa”, “fomentadora de erros e falsidades”. Como bem ele nos mostrou, devido à constante desconsideração das especificidades de suas dinâmicas próprias, imaginação e imaginário foram, na civilização ocidental, fortemente reduzidos e desvalorizados. Temos, portanto, como pesada herança um intenso processo histórico de desvalorização racionalista do imaginário, de desvalorização ontológica da imagem e de esvaziamento psicológico da função da imaginação, ainda marcando profundamente o pensamento ocidental. Desvalorização reducionista “... que não corresponde, de modo nenhum, ao papel efetivo que a imagem desempenha no campo das motivações psicológicas e culturais” (op. cit.: 24), como manifestação original e essencial de uma função bio-psico-social.

Há, portanto, uma essência que é própria do imaginário e da imaginação, esta faculdade do possível (op. cit.: 22), e é necessário reconsiderá-la e reconhecê-la. No dinamismo da consciência, ou melhor, no continuum dos modos de consciência, há uma consciência imaginante: a imaginação. Libertar essa capacidade imaginante da prisão e do colonialismo em que vive relativamente à razão instrumental, à razão técnica, passa por reavaliar e revalorizar “... as conclusões lógicas da negatividade constitutiva da imagem...” (op. cit.: 24) -  visto que sua função principal é conhecer, e não meramente definir o ser -, bem como  por saber o que as imagens “realmente” representam, reapropriando-nos, assim, da imaginação e do patrimônio imaginário da humanidade na sua integridade.

Como vemos, as imagens e a imaginação já não podem mais ser encaradas como um empecilho para o processo ideativo, pois, pelo contrário, são sua própria pré-condição. Um pensamento que nem sequer fosse acompanhado por imagens seria incapaz de se exercer, já que ele, por mais racional e racionalizado que se encontre, “... não tem outro conteúdo que não seja a ordem das imagens.” (Pradines apud op. cit.: 29). Há nelas um dinamismo organizador intrinsecamente motivado. E, mesmo degradada, a imagem ainda é portadora de um sentido que não pode ser encontrado para além da significação imaginária. Conforme Durand (op. cit.: 29), só se pode estudar a imagem pelo sentido que lhe é próprio, visto que o sentido figurado é o único realmente significativo.

 Ainda, segundo ele, Piaget, em seus trabalhos, já propusera que há uma certa coerência funcional entre o pensamento simbólico e o sentido conceptual, mostrando a unidade solidária de qualquer forma de representação (op. cit.: 30). Do mesmo modo, para Jung, todo pensamento tem suas raízes em arquétipos, em esquemas ou potencialidades funcionais, em imagens gerais, determinando inconscientemente o pensamento (op.cit.: 30). Nesse sentido, fazendo sua uma das intuições de Bachelard, Durand concluiu que,

... muito longe de ser faculdade de “formar imagens”, a imaginação é potência dinâmica que “deforma” as cópias pragmáticas fornecidas pela percepção, e esse dinamismo reformador das sensações torna-se o fundamento de toda a vida psíquica “porque as leis da representação são homogêneas”, a representação sendo metafórica a todos os seus níveis, e, uma vez que tudo é metafórico, “ao nível da representação todas as metáforas se equivalem”. (op. cit.: 30).

Ele esclarece-nos, ainda, que o que dispõe a estruturação simbólica e os próprios símbolos na raiz de qualquer pensamento são os vínculos afetivo-representativos impregnados nas imagens, de modo que a estrutura fundamental arquetípica terá sempre como base os materiais axiomáticos - as forças - do imaginário, pois:

Por detrás das formas estruturadas, que são estruturas extintas ou arrefecidas, transparecem, fundamentalmente, as estruturas que são, como Bachelard ou Jung já o sabiam, arquétipos dinâmicos, “sujeitos” criadores. (op. cit.: 15).

Nesta perspectiva, Durand, invertendo o clássico esquema sartriano que procura explicar o empobrecimento do pensamento pela imagem, pôde compreender

... a passagem da vida mental da criança ou do primitivo para o “adultocentrismo” como um estreitamento, um recalcamento progressivo do sentido das metáforas. [Percebendo que] É esse “sentido” das metáforas, esse grande semantismo do imaginário, que é a matriz original a partir da qual todo o pensamento racionalizado e o seu cortejo semiológico se desenvolvem. (op. cit.: 31).

Em relação à força elementar dos símbolos (Sinn-Bild, em alemão; Sinn: sentido - a variável na singularidade de cada cultura; Bild: forma – o universal e invariável, porque arquetipal no ser humano) e, por conseguinte, do imaginário, Durand mostra-nos que esta força encontra-se em realizar a ligação, para além das contradições naturais, de elementos inconciliáveis, a partir de  uma lógica que não seja explicativa, linear e cartesiana, mas compreensiva e complexa. Desse modo, para o estudo dos arquétipos fundamentais da imaginação humana e das motivações simbólicas, já não faz mais sentido - e nem são mais suficientes – simples (simplificadoras e redutoras) explicações lineares, derivadas de deduções lógicas ou narrativas introspectivas. Temos, sim, que buscar um método compreensivo das motivações imaginárias, encontrar as categorias motivantes dos símbolos nos comportamentos elementares do psiquismo humano, para, então, fazermos a classificação dos grandes símbolos da imaginação em categorias motivantes distintas (op. cit.: 32-8); um método que viabilize a apreensão, compreensão e interpretação dos motivos simbólicos em sua complexidade, de modo que um conjunto simbólico não seja desvalorizado a priori em relação a outro e nem ocorra a desvalorização racionalista do imaginário, da consciência e da capacidade imaginantes.

Para tanto, é necessário, conforme ele orienta, que nos libertemos do imperialismo da idéia, da obsessão do recalcamento herdadas da psicanálise freudiana, “... que reduz sempre o conteúdo imaginário a uma tentativa envergonhada de enganar a censura” (op. cit.: 39), como também já percebera Piaget. Se, de acordo com os psicanalistas, a imaginação é produto dos conflitos entre as pulsões e o seu recalcamento social, para Durand, ao contrário, ela surge, na maioria das vezes, em seu próprio movimento, “... como resultando de um acordo entre os desejos do ambiente social e natural.” (op. cit: 39). Há, portanto, uma produção simbólica que é independente do recalcamento, pois, mais do que ser um produto desse, a imaginação é, pelo contrário, a origem de uma libertação. Como bem apreendeu Bachelard, segundo Durand, as imagens “... não valem pelas raízes libidinosas que escondem mas pelas flores poéticas e míticas que revelam.” (op. cit.: 39).

É nesse sentido que as epistemologias de vanguarda e os projetos de reparadigmatização, ao mostrarem que o imaginário é muito mais do que a epifenomenal “louca da casa” e ao afirmarem-no como o fundamento basilar de toda a produção humana, trouxeram à tona um novo espírito antropológico que põe em relevo, no centro das preocupações fundamentais do mundo ocidental, a frágil grandeza do homo sapiens (op. cit.: 19) e uma outra perspectiva antropológica, em que “’... nada de humano deve ser estranho...’” (op. cit.: 40). Foi, assim, que se constituiu a necessidade de uma Antropologia, no sentido mais amplo e atual do termo, isto é, um conjunto de conhecimentos do homem resultante da associação de diversos métodos e disciplinas, que articulem o conjunto das diversas ciências que estudam a espécie homo sapiens, buscando apreender, compreender e interpretar a inteireza da dinâmica e a complexidade do animal simbólico que é o homem.

Considerando o imaginário como o fundamental denominador, no qual se entrecruzam todas as criações do pensamento humano, uma encruzilhada antropológica dos saberes, Durand contesta as divisões acadêmicas das ciências do homem, pois tal parcelização dos saberes humanos é mutiladora da necessária complexidade compreensiva dos diversos problemas que são postos pelo comportamento singular do homo sapiens, mas, também, homo symbolicus. Alerta-nos, portanto, que as questões relativas à significação e, conseqüentemente, ao símbolo e ao imaginário, não podem ser devidamente consideradas unicamente por uma das ciências humanas, mas, sim, numa perspectiva inter e transdisciplinar, pois é o imaginário “... esta encruzilhada antropológica que permite esclarecer um aspecto de uma determinada ciência humana por um outro aspecto de uma outra.” (op. cit.: 18).

Ainda, a partir da afirmação do trajeto antropológico e, correlativamente, do reconhecimento de que há uma “... gênese recíproca que oscila do gesto pulsional ao meio material e social e vice-versa.” (op. cit.: 41),  ele assinala que, como bem demonstrou Piaget, é nesse intervalo de percurso reversível que se localiza a investigação antropológica. Porque, afinal,

... o imaginário não é mais que esse trajeto no qual a representação do objeto se deixa assimilar e modelar pelos imperativos pulsionais do sujeito, e no qual, reciprocamente (...) as representações subjetivas se explicam “pelas acomodações anteriores do sujeito” ao meio objetivo. (op. cit.: 41).

Assim, símbolo e imaginário são sempre produtos de imperativos biopsíquicos conjugados com as intimações do meio. A esse percurso, Durand denomina, como visto anteriormente, trajeto antropológico, no qual é característica tanto do produto como do próprio trajeto a reversibilidade dos termos. Segundo ele, estas idéias estavam também, de algum modo, implícitas no pensamento de Bachelard, para quem

... os eixos das intenções fundamentais da imaginação são os trajetos dos gestos principais do animal humano em direção ao seu meio natural, prolongado diretamente pelas instituições primitivas tanto tecnológicas como sociais do homo faber. (op. cit.: 41).

Em relação aos símbolos, que constituem os trajetos antropológicos, Durand esclarece-nos que estes, por serem isomorfos e homólogos, acabam por convergir em grandes eixos, em constelações de imagens, com semelhanças pontuais nos diversos domínios do pensamento (ciência, arte, religião, técnica). De acordo com o autor, é o caráter de semanticidade basilar dos símbolos que faz com que estes convirjam e se constelem, pois correspondem a desenvolvimentos de um mesmo tema arquetipal, a variações de um mesmo arquétipo. Configuram-se, assim, grandes constelações, em que as imagens convergem, grandes conjuntos simbólicos denominados por ele estruturas do imaginário, “... em torno de núcleos organizadores que a arquetipologia antropológica deve esforçar-se por distinguir através de todas as manifestações humanas da imaginação.” (op. cit.: 43-4).

Percebe, como o etnólogo Levi-Strauss, que

... a psicologia da criança pequena constitui “o fundo universal infinitamente mais rico que aquele de que cada sociedade particular dispõe”. [E, portanto,] Cada criança “traz, ao nascer, e sob forma de estruturas mentais esboçadas, a integralidade dos meios de que a humanidade dispõe desde toda a eternidade para definir as suas relações com o mundo...” (op. cit.: 46).

Durand conclui ser aí, no domínio psicológico - partindo do psíquico para o cultural -, que podemos encontrar os grandes eixos que indicam a constância e direção dos arquétipos, essas realidades dinâmicas em movimento que possibilitam a convergência e a integração das diversas metáforas axiomáticas de base, as imagens motrizes, as grandes categorias vitais da representação (op. cit.: 46-7).

Para estabelecer o princípio fundamental de classificação das constelações de imagens e estruturas do imaginário, Durand utiliza-se das noções de gestos dominantes, dominantes reflexas ou, ainda, de reflexos primordiais, oriundas da reflexologia do recém-nascido. A reflexologia, ao levar em consideração os mais arcaicos conjuntos sensório-motores, constitutivos dos sistemas de “acomodações” mais elementares e originários, e a ontogênese da espécie humana, acaba por fornecer-nos algumas pistas sobre como as dominantes reflexas atuam e intervêm na constituição do simbolismo, podendo auxiliar-nos na compreensão do “polimorfismo” infantil, tanto pulsional como social. Estas dominantes agem sempre com um certo imperialismo, podendo já ser considerada como um princípio de organização, como uma estrutura sensório-motora (op. cit.: 50-1).

Assim, evidencia-se cada vez mais, pela psicologia contemporânea, a profunda vinculação entre as representações simbólicas, os centros nervosos e os gestos do corpo; e, portanto, uma estreita vinculação entre a motricidade primária, o inconsciente e a representação. Ou seja,

... esta ligação genética de fenômenos sensórios motores elementares encontra-se ao

nível de grandes símbolos (...). (...) [O que evidencia] o caráter normativo para o conteúdo

global da psique das grandes propriedades biológicas primordiais,

tais como a nutrição, a geração e a motilidade... (op. cit.: 50).

Durand propõe três dominantes reflexas - postural, digestiva e copulativa - que, configurando grandes matrizes sensório-motoras integradoras naturais das representações, dirigem e orientam a dinâmica da representação simbólica; e é neste nível que os grandes símbolos vão se formar (op. cit.: 51). Tal dinâmica está centrada na busca de equilíbrio entre as aspirações biopsicológicas e as intimações sociais; são essas as forças constituintes das dominantes reflexas, que se encontram na raiz da organização das representações. Portanto, “... ‘o corpo inteiro colabora na constituição da imagem’” (Piéron apud op. cit.: 50), no sentido de que determinados esquemas perceptivos enquadram-se e se assimilam aos esquemas motores primitivos.

Como vemos, os reflexos humanos possuem uma capacidade enorme e bastante variada de sofrer condicionamentos culturais; é o ambiente humano o primeiro condicionador das dominantes reflexas sensório-motoras. Nele, os reflexos dominantes materializam-se culturalmente, de forma que a cultura sobredetermina o projeto natural fornecido pelos reflexos primordiais, por uma certa finalidade, ocorrendo, então, a sutura entre natureza e cultura. Porém, nessa dinâmica que motiva a imagem e dá vigor ao símbolo, é necessário que  haja um mínimo de adequação e equilíbrio entre a dominante reflexa e o ambiente cultural, pois, conforme Durand, é no acordo, no equilíbrio,  entre as pulsões reflexas do sujeito e o meio em que vive que se enraízam, de modo bastante imperativo, as grandes imagens na representação, e não, como se pensava, na censura ou recalcamento (op. cit.: 52). Temos, pois, que buscar equilibrar os objetos simbólicos pela obscura motivação dos movimentos dominantes primordiais, considerando, particularmente, que os objetos simbólicos nunca são puros,

... mas constituem tecidos onde várias dominantes podem imbricar-se (...). Mais: verificamos que o

simbólico está muitas vezes sujeito a inversões do sentido, ou, pelo menos, a redobramentos

que conduzem a processos de dupla negação... (op. cit.: 54).

É nessa complexidade de base do objeto simbólico que Durand justifica o seu método, isto é, por que, a partir dos grandes gestos reflexológicos, desenlear os tecidos e os nós constituídos pelas fixações e projeções sobre os objetos do ambiente perceptivo (op. cit.: 54).

É importante ressaltar, também, que, de acordo com Durand, a isoformia entre os esquemas, os arquétipos e os símbolos presentes no âmago de sistemas míticos ou constelações estáticas permite-nos confirmar a existência de certos protocolos normativos das representações imaginárias, claramente definidos e  com relativa estabilidade, que se agrupam em torno dos esquemas originais a que denomina estruturas, as quais, por sua vez, agrupadas quanto à sua proximidade, definem o que ele chama de Regime do imaginário (op. cit.: 63-4).

Foram as evidenciáveis convergências entre uma determinada organização social, a tecnologia aí utilizada e a reflexologia que possibilitaram a Durand a proposição de dois grandes regimes de imagens ou simbólicos, não agrupados rígida e estaticamente: o Regime Diurno e o Regime Noturno (op.cit.: 57-8). Ao conjunto simbólico originário da reflexiva dominante postural que remete à elevação tanto do corpo como do olhar, com suas implicações manuais e visuais, inspirando imagens de luz, de luta, de altivez, ele chamou de Regime Diurno. Percebendo a vinculação profunda entre as dominantes digestiva e sexual, e que ambas compõem um único conjunto simbólico formado por imagens que inspiram as trevas, o descanso, a queda, Durand denominou-o Regime Noturno.

Essas duas grandes matrizes simbólicas, constelações de imagens ou regimes simbólicos, organizados por Durand, buscam dar conta das diferentes motivações antropológicas, levando em conta as convergências dos múltiplos semantismos contidos nas imagens, a partir da contraposição e da comparação de isoformismos e polaridades dos regimes e de suas respectivas estruturas. Compondo internamente os regimes de imagens, encontramos a dinâmica das estruturas antropológicas, expressando, principalmente, situações actanciais dominantes (esquemas da ação), que encarnam e polarizam as atitudes imaginativas básicas, pelas quais o ser humano enfrenta a angústia provocada pelo fluir do tempo e o aproximar da morte, a saber: no Regime Diurno, estrutura esquizomorfa ou heróica (separar); no Regime Noturno, estrutura sintética (ligar) e estrutura mística (confundir).

Constelados em dois pólos antagonistas, em torno dos quais gravitam os mitos, os devaneios, os poemas, as imagens e os símbolos, os dois grandes regimes de imagens são comparados por Durand, nas suas polaridades, quanto à presença das ‘‘estruturas’’, dos ‘‘princípios de explicação e de justificação ou lógicos’’, dos ‘‘reflexos dominantes’’, dos ‘‘esquemas ‘verbais’’’, dos ‘‘arquétipos ‘atributos’’’, da “situações das ‘categorias’” e “dos símbolos aos sistemas” (nos quais são utilizadas as diversas categorias dos jogos do Tarot), dos ‘’arquétipos ‘substantivos’’’. Durand faz uma classificação isotópica das imagens e organiza com todo esses elementos uma tabela de dupla entrada (op. cit.: 443), que apresenta uma enorme abertura e amplitude, mostrando nitidamente a possibilidade da Antropologia do Imaginário de concretizar a aproximação, a convergência, entre as várias ciências do homem.

Também, procurando nos orientar mais detalhadamente sobre as singularidades e particularidades da dinâmica intrínseca ao Imaginário, Durand especifica a idéia de esquema - schème - como a generalização dinâmica e afetiva da imagem, que forma o esqueleto dinâmico, o esboço funcional da imaginação, a consubstanciar-se nos diversos trajetos encarnados em representações concretas e precisas, presentificadoras dos gestos e das pulsões inconscientes (op. cit.: 60), realizando a junção dos gestos inconscientes da sensório-motricidade, das dominantes reflexas e das representações. Conforme assinala ele, os gestos reflexos, quando diferenciados em esquemas no contato com o ambiente natural e social, determinam grandes arquétipos, mais ou menos como os definidos por Jung, que constituem a substantificações dos esquemas: as “imagens primordiais”, de caráter coletivo e inato, que se constituem em substantivos simbólicos, estágios preliminares e zonas matriciais das idéias. Daí afirmar que, muito aquém de ser anterior à imagem, a idéia é apenas um comprometimento pragmático do arquétipo imaginário em um dado contexto histórico e epistemológico (op. cit.: 61). Pois, o valor elementar e basal dos arquétipos reside, precisamente, em se constituírem no ponto de junção entre o imaginário e o processos racionais. Segundo Durand, apoiando-se ainda em Jung,  as imagens nas quais se assentam as teorias científicas estão nos mesmos limites  daquelas que  inspiram  os contos e as lendas (op.cit.: 61). Nesse sentido, segundo ele, o que é dado ante rem na idéia

... seria o seu molde afetivo-representativo, o seu motivo arquetipal, e é isso que explica igualmente que os racionalismos e os esforços pragmáticos das ciências nunca se libertem completamente do halo imaginário, e que todo racionalismo, todo o sistema de razões traga nele seus fantasmas próprios. (op. cit.: 61).

Alerta-nos, ainda, que a organização dinâmica do mito freqüentemente corresponde à organização estática que denomina constelação de imagens. E assinala, também, que é no prolongamento constelar e dinâmico dos esquemas, arquétipos e símbolos que nos encontramos com o mito, o qual, na sua acepção, toma o sentido amplo de

... um sistema dinâmico de símbolos, arquétipos e esquemas, sistema dinâmico que, sob o impulso de um esquema, tende a compor-se em narrativa. O mito é já um esboço de racionalização, dado que utiliza o fio do discurso, no qual os símbolos se resolvem em palavras e os arquétipos em idéias. O mito explicita um esquema ou um grupo de esquemas. Do mesmo modo que o arquétipo promovia a idéia e que o símbolo engendrava o nome, podemos dizer que o mito promove a doutrina religiosa, o sistema filosófico ou (...) a narrativa histórica e lendária. (op. cit.: 62-3).

Para verificar e mostrar como isso ocorre, Durand investigou amplamente a dinâmica do mito em sua circulação pela sociedade, desenvolvendo e aprimorando sua proposta metodológica – mitodológica - para o estudo do imaginário. Elaborou, então, a concepção de Tópica Social, levando em conta as interações circularizantes, continuamente recursivas, entre mito, sociedade e racionalização, a qual representou diagramaticamente (Durand,1983: 8), colocando-os em movimento nas conhecidas tópicas freudianas e ampliada em consonância com Jung para criar uma metáfora que  melhor expressasse o funcionamento da psique coletiva. A esse diagrama ele chamou de Tópico Diagramático do Social, tomando o cuidado de destacar que “... o englobante [dos diferentes níveis da tópica], a base fundamental, é a circulação do mito que define e descreve um conjunto social...” (op. cit.: 7).

A partir do movimento circular globalizante do mito pela sociedade, ele assinala como, nessa dinâmica, o imaginário sobredetermina e circunscreve o momento sócio-cultural de um dado conjunto social, sendo, portanto, a matriz de toda sua produção cultural, inclusive dos sistemas filosóficos, lógicos e conceituais. Mostra, também, que existe um conflito entre os mitos latentes que habitam o inconsciente de uma sociedade e os mitos em vias de desmistificação racional, a tornarem-se manifestações patentes, de modo que “... no fundo, uma sociedade vive sobre dois mitos: um mito ascendente e que se esgota e, ao contrário, uma corrente mitológica que vai beber às profundezas do isso , do inconsciente social.” (op. cit.: 21).

Através da tópica social, Durand analisa o processo de racionalização, acompanhando a circulação do mito pela sociedade em três níveis, distinguindo as superfícies conscientes do social (patente) e as suas profundezas míticas (latente), a saber:

. o “isso” - o id - psicóide, nível fundador, caracterizado por uma forte implicação mítica, um máximo de não racionalidade e um máximo de "discurso dilemático"[10]; é o nível de fundação basal da sociabilidade/sociedade e aí se situam em camadas, primeiro, o inconsciente coletivo específico, com o qual se relacionam os arquétipos e as imagens primordiais, e, acima, o inconsciente coletivo cultural, com o qual se relacionam os mitos;

. o “ego” societal, nível actancial, caracterizado pela atuação dos “esquemas de ações sociais”; nele se conforma a diferenciação, a discriminação das representações conscientes de funções e papéis sociais dos

diversos atores do jogo social, polarizados em torno de funções positivas (de recuperação e de desmistificação), confortadas pela ideologia do poder, e de funções negativas (de dissidências e de desmitificação), socialmente marginalizadas pela ordem vigente;

. o “superego” institucional, nível racional, caracterizado por uma  máxima racionalização e um mínimo de espessura e  pregnância mítica; nele se conformam as conceituações, sistematizações e classificações, aí se situando os discursos  racionais e unívocos ( op. cit.: 7-12).

O movimento circular englobante, partindo da base da tópica para o cimo, vai da progressiva racionalização do mito até o máximo de racionalização; a partir dessa, continuando a circulação para a base, ocorre a progressiva desqualificação das conceitualizações. Assim, o discurso racional, em sua univocidade e espessura, situa-se no nível do superego, sendo que, no nível  patente, temos a dimensão ideológica, de pregnância mítica diminuída e, no latente, a dimensão mítica, sempre ancorada em profundidade no imaginário (Teixeira,1998: 104-5).

A um conjunto formado pela presença histórico-social de um mito em um certo tempo e espaço cultural, em um “momento sócio-cultural” discernido, definido e descrito de acordo com a tópica social, em que há uma notável homologia entre as diversas representações que se manifestam no imaginário sócio-cultural de uma época, Durand (s/d: 162-9) chama-o, a partir de uma metáfora dos movimentos de um rio, de bacia semântica. Essa seria uma grande constelação de imaginário que instaura e faz ressoar pela sociedade uma nova sensibilidade e uma outra visão de mundo, como um segmento semântico-estilístico de longa duração, uma paisagem cultural definida por uma longa duração mítica, discernidos por regimes imaginários específicos e mitos privilegiados, diretores. Considerando-se a bacia semântica como uma estrutura dinâmica, cobrindo da gênese ao eclipse do mito, sua duração é de aproximadamente 150-170 anos, aproximadamente 4 gerações de 30 anos  mais  uma certa margem de variação - entre 30 a 50 anos - (op. cit.: 257).

Tratando-se da dinâmica do imaginário global de uma sociedade num determinado período de tempo, não sendo, assim, uma estrutura fechada, rígida ou “instantânea” e fixa, a bacia semântica está escalonada em 6 fases, cronologicamente irregulares, englobadas pela tópica social e, portanto, não segmentadas e isoladas em seis setores:

... escoamento, separação das águas (e é nesta fase que se esboçam as exclusões e, por isso,

as marginalizações), confluências (isto é, reforço da corrente dominante), nome do rio

(a escolha de uma personalidade que se mitifica e tipifica nomeadamente toda a bacia semântica)

ordenamento das margens (isto é, institucionalização intelectual, filosófica e jurídica)

e, finalmente, o abrandamento, onde despontam escoamentos novos [chamados] meandros e deltas. (op. cit.: 181-2).

... [a] primeira e [a] última fases podem praticamente sobrepor-se a uma bacia semântica futura.

É nesta “sobreposição” que se verifica a tensão “tópica” (entre o mito manifesto [patente]

e mito latente ou reprimido ... (op. cit.: 257).

 

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Notas


[1]-Professor Titular de História da Rede Pública Municipal de São Paulo; graduado em História pela UNESP-Campus de Franca/SP, em Pedagogia  e Mestre em Educação pela FEUSP; este texto é uma adaptação de capítulo de sua Dissertação de Mestrado (Dib, 2002), dissertação antecedida  por um artigo (Dib, 1999)

[2]-Física quântica, química molecular, biogenética.

[3]-Adorno, Horkheimer, Marcuse,  Harbemas.

[4]-Deleuze, Foucault, Derrida, Lyortard.

[5]-O conceito de paradigma é aqui compreendido, baseando-se no pensamento de Morin (1984, s/da e s/db), como esquema/estrutura nuclear e matricial de valores, crenças, pressupostos, representações, idéias, pensamentos, teorias, raciocínios etc., que tem um papel primordial, fundador, na cultura - e, portanto, na adesão coletiva a uma visão de mundo -, cujas raízes estão profundamente imersas no inconsciente individual e coletivo, determinando a inteligibilidade, a atribuição de sentido(s).

[6]-Apoiados na compreensão da secular erosão dos princípios de cientificidade e de legitimação do saber acadêmico.

[7]-Dando origem à psicologia profunda e à antropologia simbólica.

[8]- Les Structures anthropologiques de l’imaginaire: introduction à l’archétypologie générale. 1ª ed., Paris: PUF, 1960.

[9]-Explicitada neste artigo, a partir da p. 23.

[10]-Lévi-Srauss chama de discurso dilemático o discurso em que as proposições não consideram o terceiro excluído, a contradição, de modo que pós e contras são afirmados, porém sem haver decisão; esse tipo de discurso é próprio do discurso mítico (apud Durand, 1983: 10).

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